Gil e os 45 anos de Realce

Por Val Gomes

Em agosto de 1979, Gilberto Gil lançava o LP Realce, com um vigor e coerência que até hoje poucos conseguiram na música popular brasileira, tanto na expressão das melodias e ritmos (samba, afoxé, disco e reggae, entre outros) quanto nos conteúdos líricos, políticos, metafísicos e sensuais das letras.

Gravado nos Estados Unidos, o álbum foi intencionalmente um produto de mercado, com as vozes de Gilberto Gil acompanhadas por uma poderosa sonoridade musical e o compositor tocando pandeiro, violão de nylon e violão Ovation, um instrumento de sucesso na virada da década.Realce contempla a crítica política e social, mas de forma otimista (“…Tudo, tudo, tudo vai dar pé…”), reflexo da época de anistia no Brasil e da atitude sempre tolerante, mas não alienada, do artista.

O disco faz menções às cenas, à tradição, à religiosidade e ao orgulho de ser da Bahia, interpreta com ousadia e “modernidade” o samba-canção Marina, de Dorival Caymmi, toca em novas propostas filosóficas de vida, questiona o racismo, a escravidão e o preconceito e propõe a liberdade para a criação musical, entre a tradição popular brasileira e o pop internacional, sem maniqueísmos.

A música disco, a discothéque, os filmes “Os embalos de sábado à noite” e “Superman”, a telenovela Dancin’ Days e a música “Odara”, de Caetano Veloso, que precederam Realce, são fatos importantes para ouvir ainda com muita atenção um dos mais significativos trabalhos de Gilberto Gil.

Confira o que o próprio artista escreveu no encarte do disco:

“Realce, uma maneira de dizer a luz geral. Denominar o brilho anônimo, como um salário mínimo de cintilância a que todos tivessem direito. Como a noite de discothéque após o dia de trabalho. Realce, uma maneira de dizer o bem-estar. Denominar o prazer coletivo, o êxtase do simples caminhar contra o vento de qualquer um. Como o domingo de futebol após a semana de fábrica. Realce, uma maneira de dizer o Deus louvar. Denominar o santo sem altar, como nos tempos profanos dos terminais de trens e aviões, onde todos estão pra nada, indo ou vindo para tanta coisa. Realce, cada um por si, Deus por todos” – Gilberto Gil.

Faixas

Realce.

Sarará Miolo – “como era chamado o mestiço arruivado na Bahia”.

Super-homem (A canção) – “em alusão ao personagem dos quadrinhos e do cinema”.

Tradição – “com inúmeras referências a Salvador, capital baiana”.

Marina – samba-canção de Dorival Caymmi.

Rebento – “o ato da criação”.

Toda Menina Baiana.

Logunedé – “orixá filho de Oxossi e Oxum, símbolo mítico do novo homem”.

Não Chore Mais (No Woman, No Cry) – música de B. Vincent. Versão: Gilberto Gil – “referência aos anos de repressão mais dura no Brasil”.

Fontes: www.gilbertogil.com.br e Literatura Comentada “Gilberto Gil” (Abril Educação)

Gil fala sobre a canção Realce:

Comentário*

Por causa dos questionamentos com relação ao seu significado — a imputação de uma minoridade que ela teria dentro de minha obra, já que representaria uma escorregadela na facilidade do efeito pop —, a necessidade, que eu sinto, de fazer a defesa de uma canção que tem para mim um sentido profundo no meu trabalho e no processo de aprendizado que eu coloco como dado essencial da minha relação com o fato de fazer canções — de dizer coisas através de canções populares —, e que diz muito sobre quem eu sou como compositor e sobre o grau de exigência que me imponho para que minhas canções exprimam alguma coisa importante na minha vida.

“Realce” é de uma época em que eu me introduzira no campo da meditação, entendida como uma arte mais formal e rigorosa de pensar-se e refletir-se, e estava interessado em possíveis traduções da filosofia oriental para o idioma da canção, tendo resultado num dos concentrados das meditações que eu então fazia e sido resultado de um processo profundo e ruminante, um longo trabalho de elaboração e meditação, sendo ela mesma uma canção sobre o wu wei, termo chinês que significa “ação da não ação”, ou a impotência que se torna potência, ou o esgotamento dos contrários nas suas polaridades (um polo se esgota e inicia o que está contido no seu oposto) etc.

É nesse sentido uma canção ambiciosa e carregada de significados embutidos que vão sendo descobertos, como, na cebola, as camadas por debaixo das camadas.

A letra parte de um escopo geral que é falar do que, à época, eu chamava de “salário mínimo de cintilância a que têm direito todos os anônimos” nos terminais de metrô, nas arquibancadas dos estádios, nas discotecas. Esse lado Saturday Night Fever está propositalmente explicitado nos três pseudorrefrões, que funcionam para reiterar a macdonaldização da vida cotidiana nas grandes cidades, mas também para dar-lhe uma qualificação de profundidade que necessariamente também existe nessas coisas tão associadas à superficialidade. Por outro lado, cada uma das estrofes que antecedem os “refrões” remonta ao sentido de potência contido no wu wei.

Estrofe I; versos 13— Há uma ideia da força que remete às mudanças geológicas; a um revolver da natureza que se dá por si só. As grandes catástrofes das idades do universo passam como um trator por sobre a condição humana. Ao mesmo tempo, a fonte da força também está à disposição do que chamamos consciência, inteligência, vontade: Homo sapiensVersos 46— O homem como combustível e energia do motor da natureza, parte e partí- cipe do moto-contínuo, cíclico-recorrente (o eterno retorno), de criação e destruição, anulação e afirmação, operado pela natureza na história e pela história na natureza. A relação dinâmica entre ambas e o homem como o corte.

II13— O interstício sutil entre a vontade e o resultado, o fazer e o não fazer. O fato de que tudo está “afeto”; de que, do ponto de vista quântico, digamos, a mínima partícula de emanação pensátil está “afeta”; de que o afeto pertence à totalidade do pulsar existencial das coisas, à dança de Shiva; e mesmo o sentir quieto ali naquele canto pode estar afetando uma estrutura qualquer de uma parte qualquer do universo. 46— O afeto, portanto, é fogo; portanto, se cuide — mas se descuide, também, do seu sentir; pois de todo modo ele é pleno, dono de si; ele trabalha no campo onde as bactérias se criam, os átomos se criam e os eventos se dão; e, mesmo entre as partículas, o que não é visível nem palpável ainda assim é e pertence ao intercâmbio das afeições amplas, universais.

III; 1, 2 e 3. — A autonomia plena da vida sobre nós e o imperativo da fatalidade de ter nascido e ter que morrer; ter que viver esse “alfômega” nascimento-morte, a grande questão colocada para nós. 46— De como a vida entra pelos olhos e é o ferir incondicional do brilho neles. Sob o Sol ou sob a Lua, a esteira de luz estendida sobre a superfície do mar será irremediavelmente captada pelos olhos abertos. A irredutibilidade do fenomenológico. O ser sendo ferido pelos estímulos externos aos quais os seus sentidos, todos, dão sentido; a natureza se fazendo linguagem através do homem.

A simples exposição dos versos pode não remeter de imediato a significados tão vastos, múltiplos e profundos, que, no entanto, estão engastados na intenção processual da canção; no porquê de ela ter sido feita. Eu não posso exigir de todo mundo a apreensão de todos esses sentidos, mas não posso aceitar a negação deles. Minha impressão é a de que, no âmbito das pessoas cultas e inteligentes, afeitas ao dimensionamento cultural encarregador das leituras, “Realce” não é tão hermética; lida sua letra com o mínimo de atenção, muitos dos seus significados logo se insinuam, e as portas para outras digressões possíveis se abrem.

Era o momento auge da música disco — aquela linfa, aquela liquefação pop depois da época rock, da época hippie, conceitualmente mais densa. Iniciando o processo de expansão geográfica das minhas atividades e vivenciando o cotidiano das pessoas comuns de vários lugares do mundo, eu desejava conciliar os lugares-comuns das pessoas desses lugares e trazer os elementos da cultura de massa contemporânea internacional em sua complexidade.

Por ter em mim os traços nítidos do criador marcado pelo compromisso com a banalidade, egresso de uma tradição cultural média brasileira, a da canção popular, eu me sentia parte integrante daquele fenômeno, a que vim a me referir como a “superfície do profundo” — onde o profundo não é captado como tal e só pode ser captado como superficial porque só está na superficialidade.

E é disso que falam “Realce” e outras canções minhas da época. Utilizando-se de elementos fáceis e flácidos, mas remetendo também aos sentimentos de elevação que cada simples ser pode e deve ter, elas trabalhavam para uma conciliação do conceito de sofisticado com o conceito de banal, contra o reducionismo cataloguista dos cânones clássico e popular e contra a ideia do estanque prevalecendo sobre a do osmótico e interpenetrante.

Diziam: “Ah, o brilho! Está se referindo à cocaína!”. Nunca me passou cocaína pela cabeça, mas é evidente que, no campo da abrangência da canção, você tinha coisas como Saturday Night Fever como elementos, e que a cocaína também estava ali; tudo estava: sexo, drogas e rock ‘n’ roll, o prazer do hedonismo — assim como o prazer do ascetismo. Cortes muito claros entre os dois lados; Ocidente-Oriente.

“Realce” custou muito tempo e aflição para ser feita pelas muitas funções sobrepostas com as quais ela se comprometeu de antemão, a começar pela de fecho da trilogia dos re — que tinha em Refazenda o primeiro e em Refavela o segundo ponto —, em substituição a “Rebento”, samba que fiz antes e que acabou estando no mesmo álbum, mas que não dava conta do conceito do álbum, que incluía a maré rasa da efervescência disco e o poço fundo da contemplação espiritual. (Minhas músicas têm quase sempre um estímulo conceitual, que é também quase sempre o do disco de que fazem parte.)

Eram muito apriorísticas as proposições e o alcance de “Realce”. Sentidos novos iam sendo exigidos e agregados ao longo do tempo da sua realização, e a cada dia a música ficava mais difícil. Começada aqui, onde anotei as primeiras ideias, soltas, ela tomou umas dez páginas de esboços, e eu só a terminei após dois meses de excursão pelos Estados Unidos, quando já estava gravando o disco, lá.

A expressão título surgiu por causa da Lita Cerqueira, fotógrafa, negra, baiana, vinda de Santo Antônio, meu bairro, frequentadora da minha casa e da casa de Caetano, pessoa das nossas relações íntimas e com muitos interesses comuns a nós na época. Ela falava muito em “realce”, “realçar”…

*Extraído do livro Todas as Letras – Gilberto Gil